domingo, 26 de junho de 2011

Toca a Missa!

Meu pai era um dos seis filhos de minha avó Rosinha e meu avô Silvério. Convivi muito pouco com eles, porque logo nos deixaram. De minha avó tenho a lembrança de uma espanhola de pele morena, magrinha e delicada. Meu avô se foi quando eu tinha apenas dois anos e de seu rosto sei apenas por fotos. Dizem que ele era conhecido por ser o maior “contador de causos” da cidade, sempre com uma história nova na ponta da língua. Reunia as pessoas a sua volta e narrava o acontecido do dia, no qual ele era quase sempre o protagonista e em todos era o herói. Tudo repleto de muita criatividade e exagero.

Meu pai herdou dele essa verve. Foi dele que ouvimos muitas vezes os detalhes sobre o dia de seu casamento e que agora tenho a ousadia de narrar.

Depois do episódio do Grão de Filipe, meus pais cumpriram todas as etapas que as pessoas de família da cidade deviam respeitar: um namoro nem tão curto nem tão longo, noivado e casamento. A data escolhida para a boda foi oito de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição. 

Naquela manhã a cidade acordou em festa, envolvida nos últimos preparativos. Vestidos novos saindo dos cabides, ternos, camisas, chapéus, sapatos impecáveis, tudo especialmente escolhido para o dia. Na casa da noiva, tudo isso somado à correria na cozinha pelos comes e bebes que seriam servidos depois da cerimônia.

A igreja foi sendo ocupada aos poucos pelos convidados. Meu pai chegou acompanhado de meus avós e de meus tios e todos se posicionaram a espera da noiva que, como de praxe, é sempre a última a chegar.

Meu pai havia percorrido um longo caminho até aquele momento e agora poucos minutos o separavam de seu sonho. A ansiedade, que era parte integrante de sua personalidade, só fazia aumentar. Aos poucos, foi se tornando incontrolável e passou a comprometer o entendimento dos fatos que se seguiram.

Segundo ele, uma chuva torrencial caia naquela manhã, lavava as casas e árvores, transformava em lama a terra das ruas da pequena Taiaçú. 

Não se sabe de fato se minha mãe atrasou. Muito provavelmente meu pai chegou bem antes do horário marcado, como era seu costume, e foi sendo torturado pela água da chuva enquanto esperava. Aquela visão da praça encharcada e os ponteiros do relógio que giravam e giravam arrastando o tempo foram consumindo o coração do noivo e deram a ele a certeza de ter sido abandonado no altar. A chegada da notícia de que o carro que traria a noiva não conseguia subir a rua de lama escorregadia veio com meu avô Sinhô, que entrou encharcado igreja adentro, e apenas confirmou o que o coração de meu pai já pressentira: ela não viria!

Meu pai antevia toda a tristeza que tomaria conta de seus dias, abandonado que já estava, e vislumbrava a porta dos fundos da igreja como a saída estratégica para escapar da vergonha diante de todos.

E era esse o cenário aos olhos de meu pai quando o padre olhou para ele e fez um gesto qualquer, certamente de conforto, traduzido por sua visão distorcida como: e agora? 

A resposta veio firme e carregada da angústia que corroia o juízo do noivo: toca a missa!

Impossível traduzir aqui a expressão de meu pai ao contar essa história, como se revivesse aqueles momentos. Como se ainda agora minha mãe não fosse chegar e a razão de seu desespero naquela manhã fosse indiscutível.
 
Essa frase marcou a nossa vida e virou o símbolo da impaciência de meu pai. Era o que transformava nossas discussões em risadas e muitas vezes colocava nelas um fim.

Minha mãe apenas ouvia a história, repetida por ele inúmeras vezes ao longo dos anos. Quando pedíamos a ela que nos contasse como foi, ela dizia: não me lembro de nada disso. Choveu, Luiz?

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Um gato preto cruzou nossa história

Minha infância foi vivida em meio a muitos bichos. Os nossos e todos os da vizinhança.

Naqueles quintais que nos rodeavam havia gatos, cachorros, peixes, papagaios e vários outros pássaros. Havia também um macaco e houve até uma onça, vinda sabe-se lá de onde, que ficou por um tempo presa por uma coleira no quintal de uma das casas despertando nossa curiosidade e medo.

Um dia a rotina dos quintais foi quebrada pelo aparecimento de um gatinho ainda filhote. Era mirrado, sem pelos e tinha um machucado muito feio nas costas. Todos se apiedaram do bichano, que exibia sinais claros de ter sido maltratado. 

Logo o gatinho estava cercado de protetores e de carinho. Apesar disso, o caso exigia cuidados especiais e ninguém estava seguro dessa competência. 

Pois foi minha mãe que teve coragem de assumir os cuidados do filhote e levou seu protegido para nossa casa. Pensando agora naqueles tempos, vejo que minha mãe gostava mesmo de animais, embora dissesse que aquela bicharada só servia para aumentar o trabalho da casa, que já era muito.

O tempo passou e o gatinho mirrado, muito bem cuidado em seu novo lar, ganhou peso e recuperou a pelagem. Aos poucos foi emergindo daquele projeto de felino o gato mais bonito e charmoso da região. Lindo, preto, angorá, tinha as quatro patinhas brancas, como se fossem botinhas. Olhando para ele, via-se os bigodes brancos naquela carinha negra e uma manchinha branca como uma barbicha, que descia pelo pescoço e crescia branqueando toda a barriga.

Ganhou o nome de Moustache.

Além de lindo e charmoso, Moustache era dono de uma personalidade encantadora. Pacífico, bonachão, deixava-se virar do avesso e apenas ronronava carinhosamente. Era também um tanto desastrado, gostava de dormir em cima da televisão, aquecendo seu sono no calor que saia do aparelho, e muitas vezes caia de lá, escorregando e arranhando a tela da TV na tentativa de se salvar.

Todos gostavam dele. Até Zackie, nossa gatinha feroz.

O que não era doce em Moustache era o miado. Era um som grave, desafinado e muito alto. Nunca mais ouvi um miado tão desajeitado como o dele. 

Moustache ficou conosco por dois anos. Um dia, não voltou de seu passeio e nunca soubemos por quê. Esperamos ouvir aquele miado por muito tempo, mas ele não voltou.

Saiu de nossas vidas como entrou: sem aviso, sem explicações. Deixou na casa um grande silêncio e muita saudade.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Menina da Agulha

Esta música meu pai costumava cantar e nos ensinou parte dela.
Aqui vai, então, mais uma homenagem a ele, que viveu entre agulhas e linhas, alfaiate que era.

Que menina é aquela
Que vem de tão longe?
Tão longe
Tão triste e pensativa
Ela vem de onde
Que rosto é o rosto dela
Que sorriso esconde
Que sonho vem com ela
Menina, me responde




Eu ando por aqui
Por aqui assim
Assim
À procura de uma agulha
Que eu aqui perdi
Era agulha que bordava
Meus vestidos, meus encantos
Meus dias coloridos
Meu Deus… e foram tantos


Menina, vá pra casa
Vá dizer a seu pai
Seu pai
Que uma agulha que se perde
Não se acha mais
Eu achei, brinquei com ela
Espetei meu coração
Na dor foi-se o brinquedo
No amor fez-se a canção


Vem viver
Que a vida inteira roda
Roda uma estrada, um violão e um canto
Roda à procura eterna de um recanto
Onde outras rodas possam se encontrar
E cantar como eu cantava outrora
Quando ao meu canto respondia a aurora
Em versos claros como a luz do dia
Em que a poesia cantará o amor




quarta-feira, 15 de junho de 2011

Os Quitutes da Vovó

Vez ou outra, recebíamos a visita de meus avós.
A casa era preparada e toda nossa rotina mudava com a chegada deles, o que nos trazia vantagens e desvantagens, claro. Vinham Vô Sinhô, Vó Marianina e Tia Chiquinha. Era um trio inseparável.
Tia Chiquinha era a irmã caçula de minha avó e sempre morou com eles. Nunca se casou, nem teve filhos, mas participou ativamente da educação da minha mãe, de minhas tias e dos filhos delas. Ou seja, da minha também! Fazia isso sem nenhuma cerimônia e não havia ninguém que se atrevesse a contestar.
Era uma mulher rígida em seus princípios, religiosa, austera. Meus amigos desapareciam quando ela chegava. Adeus brincadeiras, adeus gibis, e dá-lhe estudar. Na verdade, Tia Chiquinha assustava mesmo.
Ao contrário dela, meu avô só observava, mineiro que era. Sabia lidar com minha avó, com a cunhada e fingia se deixar levar, quando na verdade comandava aquele barco com maestria.
Naqueles dias de visitas, nossa casa se enchia de aromas e sabores. A mesa da cozinha estava sempre cheia de biscoitos de polvilho, sequilhos e outros quitutes, que ficavam alinhados à espera do forno. De lá saiam para ocupar potes e latas, abastecendo nossa despensa e garantindo delícias por um bom tempo. Eram bolos, doces, anisete... tantas maravilhas! pé-de-moleque, compotas; o doce de leite, que era mexido na panela por um tempo sem fim, até atingir o ponto exato e ir para o mármore esfriar; depois, era cortado em pequenos losangos, enchia a lata e ia para o armário. Mais uma delícia armazenada!
Minha avó era cozinheira de mão cheia e isso movimentava nossa vida naqueles dias. Refeições chegavam à mesa no capricho, fumegantes, exalando aromas convidativos. E íamos nos chegando, com o paladar aguçado, pronto.
Minha mãe herdou essa qualidade dela, o que nos garantiu sempre uma novidade saindo da cozinha. A diferença desses dias de visitas é que a casa parecia em festa e todos nos aninhávamos em torno daqueles quitutes, contando novidades ou relembrando histórias.
Minha avó se foi e levou com ela algumas receitas que ninguém mais conseguiu fazer igual. Também levou com ela esses dias, que preenchiam minha imaginação de menina e faziam da vida uma grande comemoração.